Seis anos após a passagem do ciclone Idai, a cidade da Beira, na província de Sofala, mantém marcas “profundas” do impacto do fenómeno e enfrenta novas pressões ligadas à reconstrução e à sobrevivência quotidiana. Situada na foz do rio Pungué, entre o oceano Índico e extensas zonas de mangal, a cidade da Beira é o segundo maior centro urbano do País com um dos principais portos. A sua localização expõe-na a ciclones e inundações recorrentes, como ficou evidente não apenas com o Idai, em Março de 2019, mas também com a passagem do Chalane em Dezembro de 2020, da Eloise em Janeiro de 2021 e de sistemas de baixa pressão que se seguiram nos anos posteriores. Falando especificamente do Idai, este deixou mais de mil mortos em Moçambique, Zimbabué e Maláui, e em território nacional os dados oficiais registaram mais de 600 vítimas mortais, perto de 1,8 milhão de pessoas afectadas, 240 mil habitações parcial ou totalmente destruídas, mais de 100 mil hectares de culturas agrícolas perdidos e centenas de escolas e unidades de saúde danificadas. Em Sofala, Manica, Zambézia e Tete, milhares de famílias foram obrigadas a abandonar as suas casas, e na cidade da Beira, bairros inteiros ficaram submersos e sem condições de habitabilidade.advertisement O Diário Económico (DE) foi ouvir os testemunhos de moradores que revelam um processo lento de adaptação, marcado por iniciativas individuais e comunitárias. Maria Francisco, de 49 anos, camponesa e residente no bairro de Munhava, recorda que a sua casa caiu naquela noite e que, sem apoio imediato, teve de reerguê-la com chapas conseguidas junto de vizinhos. “Os vizinhos é que me ajudaram. Eles apanharam chapas de zinco e fizeram a cobertura da casa. Eu sozinha não iria aguentar este processo”, disse a cidadã, acrescentando que para sustentar a sua família, dedica-se à venda de tomate e banana e ao cultivo de arroz em Fambiça. Maria Francisco explica que no bairro não há moagem para descascar o arroz que produz, pelo que recorre a pilão, e pede que a cidade disponha de mercados formais e serviços básicos. As vias de acesso continuam a ser apontadas como um obstáculo. Xavier Pereira de Barros, de 67 anos, pescador residente na Beira desde 1982, observa que muitas ruas estão degradadas, dificultando a circulação. “Nós precisamos de uma cidade com estradas em melhores condições. A edilidade está a fazer o seu papel mas creio que deve esforçar-se mais”, disse. Paulino Trigo Sangaroti, de 53 anos, cozinheiro no restaurante Império (perto da praia), acrescenta que, mesmo após pequenas chuvas, há zonas que ficam alagadas, o que compromete não apenas a mobilidade como também o esforço de quem tenta reconstruir casas, uma vez que paredes em construção acabam por ruir. O que diz a edilidade? O presidente do Município da Beira, Albano Carige, reconhece que a cidade é um espaço em contacto directo com o mar e que o risco de inundação se mantém permanente. O responsável afirma que “a gestão do território passa por sistemas de drenagem e comportas, mas também por diálogo entre ciência e saber local, sobretudo para evitar a ocupação de corredores de água.” Cidade da Beira ainda se recente dos impactos da passagem do ciclone Idai Albano Carige defende que as experiências da cidade da Beira devem ser partilhadas com outras cidades costeiras do País, e que os fóruns comunitários são fundamentais para garantir a adesão da população às medidas de ordenamento para evitar zonas de enchentes. Sobre os financiamentos de recuperação pós-Idai, admite que os resultados foram parciais, mas sustenta que “a reconstrução deve seguir por etapas, combinando os fundos disponíveis com o esforço das comunidades.” Pequena pesca sob pressão No sector da pesca artesanal, a pressão sobre os recursos tornou-se mais visível. Xavier Pereira de Barros explica que as capturas já não têm o porte de antes e que, por necessidade, muitos pescadores “entram ao mar mesmo em condições de risco.” O pescador reconhece ser “frequente a captura de peixe abaixo do tamanho de referência”, embora a prática seja proibida. Para ele, a escolha está directamente ligada à falta de emprego e à necessidade de garantir alimentos. “Falar sobre a pesca é falar sobre a fome de cada um. Nenhum cidadão pode desafiar as águas, sabendo que tem o que comer. Se tivesse outra forma de alimentar a sua família não iria desafiar o mar. Está a fazê-lo porque não tem o que comer”, justificou. Matilde Bernardo, de 47 anos, vendedora de peixe, confirma esta realidade. A cidadã compra peixe em pequenas quantidades, seca ou fumega e revende, explicando que o negócio depende do ciclo das marés: “Há períodos em que a rede traz peixe e outros em que não há captura, o que paralisa o trabalho.” Por falta de oportunidades de emprego, alguns cidadão capturam peixe antes do seu amadurecimento para revender Matilde refere que os preços “variam muito”, podendo uma bacia custar 500 meticais e revender-se por valores mais altos, até 1200 meticais, dependendo da quantidade disponível e da procura no mercado. “Estamos a viver assim. Estamos a alimentar e a educar as nossas crianças através desta actividade. Por isso é que é difícil as pessoas deixarem. Se nós deixarmos, onde iremos viver?”, questionou, referindo que “muitas pessoas não têm emprego. O nosso está aqui na praia. O Governo não pode dizer que as pessoas têm de deixar de pescar, pois não vai conseguir dar dinheiro a todos. Não vai conseguir sustentar ninguém. Aqui, cada um está a lutar pela sua parte.” Este cenário é acompanhado de perto por especialistas em biodiversidade marinha, que alertam para o risco de colapso dos ecossistemas costeiros se persistir a captura de espécies antes do tamanho ideal. Na mais recente Conferência da Biodiversidade Marinha, realizada na Beira, investigadores sublinharam que a retirada precoce de peixes da cadeia de reprodução compromete a renovação dos sticks e ameaça a subsistência das próprias comunidades que dependem da pesca artesanal. Na ocasião, defenderam “maior fiscalização, mas também medidas sociais que ofereçam alternativas de rendimento, sob pena de os pescadores continuarem a escolher entre cumprir a lei ou alimentar as famílias.” Na cidade da Beira, seis anos depois do Idai, a memória do desastre permanece nas casas reconstruídas com chapas recolhidas, nas estradas com buracos, nas águas que ainda se acumulam após chuvas ligeiras e nas redes de pesca que trazem peixe cada vez mais pequeno. Entre estas marcas, sobressai também a tentativa de reorganização, onde se cruzam práticas de sobrevivência, saberes tradicionais e intervenções municipais. A cidade permanece vulnerável, mas continua a ajustar-se às exigências impostas por um território de risco e por fenómenos climáticos que se repetem com frequência. Texto: Nário Sixpene

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