Um país rico em potencial, mas cronicamente pobre em receitas. E a pergunta que se impõe é simples: qual a razão para o Estado moçambicano continuar incapaz de arrecadar o que lhe é devido? Entre portos movimentados e mercados fervilhantes, milhões em impostos evaporam-se todos os anos, escapando por entre as frestas de um sistema ineficiente, poroso e, por vezes, conivente. Esta realidade, muitas vezes ignorada nos grandes debates económicos, ajuda a explicar os sucessivos défices do Orçamento do Estado e a fragilidade das contas públicas. Como resolver esta preocupação? E nquanto as alfândegas registam volumes crescentes de importações e exportações, a verdade inconveniente é que boa parte dos impostos devidos pelo comércio externo não chega aos cofres do Estado. A subfacturação, o contrabando, as isenções mal geridas e a corrupção continuam a minar a capacidade de arrecadação nas fronteiras, fazendo das alfândegas um campo de batalha entre a legalidade e os interesses instalados. Internamente, o panorama não é mais animador. Impostos como o IVA (sobre o consumo), o IRPC (sobre o rendimento de pessoas colectivas) e o IRPS (pessoas singulares) continuam a ter baixas taxas de cumprimento voluntário, com muitas empresas a operar na informalidade ou a aproveitarem brechas fiscais para reduzir drasticamente a sua carga tributária. A agricultura e o sector informal, que empregam a maioria da população, estão fora do alcance da máquina fiscal, enquanto sectores como os transportes, os serviços e o comércio urbano escapam sistematicamente à supervisão efectiva. Esta debilidade estrutural compromete a capacidade do Estado em financiar serviços essenciais e investimentos públicos. Em 2025, prevê-se que Moçambique enfrente um défice orçamental superior a 8% do PIB (126,8 mil milhões de meticais), dependente de financiamento externo e de cortes em áreas vitais. A crise na arrecadação fiscal não é apenas um problema técnico: é um sintoma da crise de governação, da falta de confiança dos contribuintes e da dificuldade do Estado em se fazer presente, eficaz e justo. Boa parte dos impostos devidos pelo comércio externo não chega aos cofres do Estado. Subfacturação, contrabando e corrupção continuam a minar as alfândegas A urgência de uma reforma fiscal abrangente, que vá além da mera criação de novos impostos e enfrente a evasão, a ineficiência e a desigualdade no sistema actual, é mais do que evidente. O que de facto acontece e como deve ser resolvido? A E&M ouviu Mauro Daúd, gestor, economista especializado em fiscalidade e “partner” da consultora Ernst & Young (EY), uma das entidades envolvidas na assessoria ao Estado em matéria fiscal. Desde a introdução dos impostos sobre o rendimento (2002) até ao novo Plano Geral de Contabilidade (PGC-NIRF), a consultora tem oferecido pareceres e propostas técnicas ao Ministério das Finanças e à Autoridade Tributária. No contexto recente, destaca-se a colaboração com o fundo norte-americano Millennium Challenge Account para propor reformas fiscais no sector agrícola, penalizado pela interacção entre operadores formais e informais. De A a Z, Mauro Daúd ajuda a traçar e a perceber o que não vai bem no sector fiscal em Moçambique. E deixa a ideia de que é necessária uma reforma séria! Parte das soluções tributárias passam pela eficácia aduaneira A urgência de redefinir a política fiscal Para Mauro Daúd, tudo começa com uma pergunta essencial: o que queremos alcançar com a política fiscal em Moçambique? A arrecadação de receitas ou o controlo da despesa pública são consequências de uma decisão política e estratégica mais profunda. A política fiscal, lembra o fiscalista, não se limita a impostos. Deve ser entendida como parte da política orçamental e como instrumento de desenvolvimento económico. A definição dessa política deve partir de uma escolha clara entre um modelo fiscal expansionista ou mais restritivo. Isto implica decidir, por exemplo, se o País quer estimular ou conter o consumo e investimento. No entanto, em Moçambique, a legislação fiscal manteve-se praticamente inalterada durante décadas, sem acompanhar os ciclos económicos e as necessidades do País. A máquina fiscal ignora grande parte da economia informal e agrícola. Sem dados fiáveis, tributar torna-se num exercício especulativo. A digitalização deve servir para mapear e incluir, não apenas cobrar Um dos efeitos directos da política fiscal sobre a vida das pessoas é o impacto no seu rendimento disponível. Reduzir o imposto sobre os salários, por exemplo, permite que os cidadãos gastem mais e impulsionem a economia. No entanto, ao contrário de outros países onde a aprovação do Orçamento do Estado é seguida com atenção por todos, por anteciparem os seus efeitos fiscais, em Moçambique, este impacto raramente se faz sentir. A legislação é rígida e as alterações pontuais não atingem, na prática, os objectivos desejados. Disfuncionalidades do IVA. Distorções e desperdícios Um dos casos mais ilustrativos das incoerências da política fiscal moçambicana reside no tratamento dado ao IVA, sobretudo no sector do petróleo, gás e mineração. Desde a introdução do imposto, em 1998, várias isenções foram sendo concedidas a determinados segmentos, como a fase de prospecção e pesquisa, com o objectivo de atrair investimento. No entanto, estas medidas criaram distorções no funcionamento da cadeia de valor do imposto. As chamadas ‘notas de regularização’, usadas como comprovativo de isenção, em vez de pagamentos efectivos, acabaram por travar a circulação de dinheiro real na economia. “Na prática, estamos a trocar dinheiro por papel, e isto mata a economia”, resume Daúd. Ele ilustra o ponto com uma história simples: uma nota de 100 meticais que circula rapidamente entre vários agentes económicos gera riqueza, mesmo que ninguém fique com ela no final. Se, em vez disso, a transacção se fizer com um documento sem valor circulante, o ciclo quebra-se. O problema ganha outra dimensão quando se considera que grandes investimentos, como os projectos de gás natural, envolvem dezenas de milhares de milhões de dólares. Com uma taxa de IVA de 16%, só uma destas empresas poderia, teoricamente, gerar mais de 3 mil milhões de dólares em imposto. Se isso não se traduzir em dinheiro real a circular, o impacto económico directo para o País desaparece. Outro ponto crítico é a incapacidade do Estado em reembolsar o IVA que deve às empresas em tempo útil. O problema é parcialmente financeiro, mas é sobretudo administrativo. Para o fiscalista, é inadmissível alterar o funcionamento de impostos estruturantes como o IVA, o IRPS ou o IRPC apenas para contornar falhas de gestão. A solução passa por modernizar os sistemas administrativos do Estado e tornar mais eficiente a máquina fiscal, em vez de deformar os próprios impostos. Importa diversificar além de grandes projectos, como o gás liquefeito Diversidade, sobreposição e distorções dos impostos Outra componente crítica que muitas vezes escapa ao debate técnico é a justiça percebida do sistema fiscal. Segundo Mauro Daúd, um dos papéis centrais do sistema deve ser o de promover justiça social. “Não é só cumprir a lei. É preciso que os contribuintes sintam que os seus impostos são bem aplicados”, afirma. No entanto, este sentimento de justiça está ausente em grande parte dos contribuintes, sobretudo do sector privado, que manifesta a ideia de que, apesar da taxa nominal estar entre 30% e 32%, há muitos encargos adicionais que tornam o esforço fiscal mais pesado. “Temos taxas de impostos nacionais, depois temos impostos autárquicos, depois temos as taxas sectoriais. Muitas vezes, incidem sobre o mesmo sujeito passivo.” O resultado disto é um ambiente de frustração e evasão, que precisa de ser enfrentado com melhor definição de política fiscal e maior transparência nos gastos públicos. Mauro Daúd alerta, no entanto, que o verdadeiro entrave à justiça fiscal em Moçambique não é a informalidade em si, mas a falta de informação sobre as actividades económicas que a sustentam. Exemplo disso é o recente debate sobre a tributação de transacções electrónicas. “Estamos a falar de 3%, mas sobre que base?”, questiona. Sem dados fiáveis ​​sobre os fluxos informais, qualquer tentativa de tributação torna-se num exercício especulativo. O papel estratégico da digitalização Sobre os planos de digitalização anunciados pelo Governo, Mauro Daúd reconhece o seu potencial, mas alerta para os riscos do entusiasmo acrítico. “Não podemos digitalizar só porque todos estão a fazê-lo. Precisamos de uma visão clara sobre o que queremos digitalizar, para quê e com que objectivos”, sustenta. Para o especialista, os propósitos devem estar ancorados em ganhos de eficiência, maior transparência e combate à corrupção. A justiça fiscal não se alcança com leis complexas, nem taxas elevadas. O sistema deve ser simples, proporcional e confiável para todos Neste âmbito, destaca a introdução do sistema SAF-T, um ficheiro digital padronizado criado pela OCDE e já implementado com sucesso em países como Portugal, Angola e Cabo Verde. A EY apoiou a sua aplicação através do desenho conceptual do sistema, entregue à Autoridade Tributária de Moçambique no âmbito de um projecto financiado pelo Millennium Challenge Account. “A digitalização vai ajudar na questão da (recolha de) informação e no alargamento da base tributária. Porque alargar não significa que todos passem a pagar impostos. Significa entender melhor quem pode e deve contribuir.” A ausência de dados concretos, especialmente sobre sectores como a agricultura, é outro desafio. “Nós anunciamos um PIB, mas em toda a cadeia da agricultura não temos informação. E sem dados, não é possível formular boas políticas públicas”, afirmou. A produção legislativa, no Parlamento, determina a velocidade da reformas Sistemas simplificados. “Quem pode mais, paga mais” Trata-se de um modelo em que quem tem mais capacidade administrativa e financeira assume mais responsabilidades fiscais. O Imposto Simplificado para Pequenos Contribuintes (ISPC), por exemplo, já isenta quem tem volumes de negócio até 600 mil meticais, o equivalente a 36 salários mínimos mais elevados (do sector bancário e segurador). No entanto, as incoerências entre leis e práticas acabam por anular este benefício. “Por exemplo, se temos uma senhora que vende peixe a um hotel e que não tem documentos, a empresa não pode deduzir este custo. Então, ou prefere não lhe comprar ou entra no mesmo esquema.” Ou seja, uma legislação mal calibrada cria desincentivos à formalização e distorce relações comerciais. “Se a lei já diz que não quer tributar até 600 mil, porque é que existem retenções na fonte para transacções de 100 meticais?” questiona. A solução passa por simplificar e harmonizar toda a estrutura tributária: impostos nacionais, autárquicos e sectoriais devem ser articulados de forma lógica. “Temos de delinear, simplificar e permitir que os pequenos produtores cresçam até ter capacidade organizativa”, sugeriu. Autofacturação e inclusão. Experiências que inspiram Uma das soluções pensadas na reforma fiscal em curso é a autofacturação. Ou seja, “quem tem capacidade administrativa e contabilidade organizada pode emitir uma factura em nome de quem não tem esta capacidade.” Este modelo já é usado noutras regiões e reduz drasticamente as barreiras à entrada no sector formal. “A ideia é que o pequeno produtor se concentre na produção e a grande empresa assuma o encargo fiscal correspondente.” Além disso, a experiência internacional mostra que os últimos países a adoptarem reformas podem aprender com os erros dos pioneiros, sem ter de reinventar a roda. Por isso, Moçambique deve “correr”, desburocratizar e adaptar rapidamente as suas políticas fiscais ao contexto real da economia e da sociedade. Texto: Celso Chambisso • Fotografia: Istockphoto

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